A pedido de algumas pessoas, coloco aqui a entrevista que a Quercus São Miguel concedeu ao Correio dos Açores, no âmbito do Dia Mundial do Ambiente:
Ambiente mal tratado em São Miguel:
SCUTS: “Arrasaram centenas de árvores centenárias”
Fajã do Calhau: “Obras são um ‘estúpido’ erro humano”
Vacas a 100 metros de reservatório de água que abastece a ilha
06 Junho 2010 [Reportagem]
“É com estupefacção que vejo os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e os Planos de Ordenamento do Território suspensos para viabilizar construções de duvidosa necessidade e de gosto discutível, sem também qualquer preocupação com o enquadramento paisagístico das mesmas”, afirma Paulo Nascimento Cabral, responsável da Quercus em São Miguel a propósito do Dia Mundial do Ambiente.
Correio dos Açores - Tem-se sacrificado o ambiente ao progresso em São Miguel? Porquê?
Esta, infelizmente, é uma realidade. Não deixa de ser um paradoxo, na nossa região, o progresso fazer-se de costas voltadas ao ambiente. Parece-me incompreensível que os responsáveis por esta região não percebam que a nossa mais-valia passa por mantermos as nossas paisagens, a nossa biodiversidade, o verde que nos caracteriza, a pouca intervenção humana, a protecção dos nossos “santuários” e reservas ecológicas, enfim… é com estupefacção que vejo os Planos de Ordenamento da Orla Costeira e os Planos de Ordenamento do Território suspensos para viabilizar construções de duvidosa necessidade e de gosto discutível, sem também qualquer preocupação com o enquadramento paisagístico das mesmas.
A razão para este facto é relativamente simples: dado o baixo nível socioeconómico e cultural da maior parte da nossa população, esta deslumbra-se com as obras, o chamado betão. Infelizmente, os nossos governantes aperceberam-se disto e em vez de promoverem a moralização do sistema, incutir valores e desenvolver um sentimento de pertença à nossa terra, ao respeito pela natureza, uma maior harmonia entre o Homem e o ambiente, um desenvolvimento interior e do próprio ser ao nível dos seus valores, optam pelo caminho mais fácil e mostram obras de betão. O outro lado é mais difícil e não é visível, pois serão precisas gerações para conseguirmos ver algum resultado, algo que os políticos não querem.
Associado a este baixo nível socioeconómico e cultural da nossa população, temos a difusão da responsabilidade dos restantes membros da sociedade, do não exercício da sua cidadania activa, não participação nas organizações da sociedade civil, não mobilização, a não ser quando o problema os afecta directamente. Assim, ficamos à mercê do destino e dos escrúpulos (ou ausência deles) de quem nos governa.
SCUT: “perdemos o controlo da obra”
De que forma a construção da via em regime de Scut entre Ponta Delgada e Nordeste poderia ter salvaguardado mais as questões ambientais?
Não discutimos acessibilidades, mas sim os impactos que estas estão a ter na nossa ilha. Tudo isto seria evitado, se na fase de planeamento da obra, existisse um período sério de discussão pública com toda a população afectada e organizações envolvidas. Assim evitaríamos os problemas na Ribeira Chã, na Caloura, na Vila Franca, na Maia, no Porto Formoso, em Água de Pau, enfim, em quase todos os locais por onde passa o traçado. Analisando o projecto, dá a ideia que traçaram uma linha na planta e depois passaram à prática, não tendo em conta as especificidades dos terrenos que estavam a atravessar. Desta forma arrasaram dezenas, para não dizermos centenas de árvores centenárias, destruíram bons terrenos de cultivo, terraplanaram montes, obstruíram linhas de água, depositaram os inertes em terrenos na costa, acabando por irem parar ao mar… Está à vista de todos, basta dar um passeio pela ilha. Aconselhamos, em dada altura, que os cerca de quatro milhões de metros cúbicos de terra fossem utilizados para compor/recuperar algumas zonas de extracção de inertes e cascalheiras, de modo a atenuar o impacto visual, mas infelizmente, por razões financeiras, tal não foi viável. Perdemos uma oportunidade única de tentar suavizar o impacto da mão humana. Não será com toda a certeza o facto de se plantar plantas ornamentais ou mesmo endémicas que atenuarão o rasto de destruição das SCUT. A análise custo-benefício deste projecto está extremamente desequilibrada em desfavor do ambiente. Acho que ainda vamos a tempo, nesta obra e em futuras obras, de exigir contrapartidas ao nível ambiental do possível impacto causado pelas mesmas.
Se me permite uma nota mais pessoal, acho também “interessante” que sejam as empresas que estão a construir as vias SCUT, que colocam avisos no jornal sobre interrupções de trânsito. Preocupa-me que até nisto, tenhamos perdido o controlo da obra.
Fajã do Calhau: “Estúpido Erro humano”
Há um tema que tem sido cara à Quercus que é a construção de uma via para a Fajã do Calhau. Qual a sua opinião sobre todo este processo?
Volto a repetir o que disse sobre este assunto: “As obras na Fajã do Calhau são um estúpido erro humano”. Será uma ferida que nunca irá sarar, sem qualquer justificação, sem fim previsto, em que apenas foi tido em conta o interesse de alguns. Será sempre um local altamente instável que mancha de vermelho a nossa costa. Este é um exemplo de como não se devem fazer as coisas, pois existem dúvidas a todos os níveis e as justificações não são convincentes… Mais uma vez preocupa-nos a falta de sensibilidade de quem nos governa. O problema é que as pessoas ficam indignadas com o que vêm, mas depois não agem, não criticam. Se fossemos um povo com amor à nossa terra, aquela obra já tinha parado há muito tempo e não teríamos que ouvir alguns disparates de supostos responsáveis de associações ambientalistas a tentar defender o indefensável.
Toda a orla marítima de São Miguel merece uma reflexão profunda. É fácil a aplicação do POC de salvaguarda da orla costeira quando permanecem alguns atentados, como o despejo de esgotos sem qualquer tratamento para o mar?
Sem dúvida. Esta é mais uma razão da falta de sensibilidade e cultura da nossa população. O desenvolvimento da nossa terra não está a ser harmonioso. Por um lado, temos grandes obras, centros comerciais, estradas, etc, por outro ainda temos casas a despejar esgotos para o mar e para as ribeiras que passam nas traseiras das habitações. Tem que haver uma grande aposta no saneamento básico, não só nas infra-estruturas comuns a todos os cidadãos, mas também na ligação das próprias residências particulares à rede pública, obras estas que deveriam ser comparticipadas pelas entidades competentes. Gostaria de conhecer a percentagem de munícipes que estão ligados à rede. No entanto, não queria deixar de referir que a questão dos esgotos não invalida a proibição de construção na orla costeira, que descaracteriza as nossas ilhas. Aliás, tem havido alguns problemas com derrocadas, pondo em perigo a segurança dos próprios moradores. Outras situações existem, por exemplo, numa parte da costa em Rabo de Peixe, em que as habitações foram abandonadas e neste momento parece um local fantasma. O desmazelo não pode vir de quem nos governa, aposto que daqui a pouco tempo teremos mais umas construções no local.
Especialistas afirmam que se está a lançar cada mais adubos para a terra em São Miguel para obter mais rendimento do solo face à quantidade de vacas que existe, com impactos negativos nos lençóis de água da ilha. Que comentário lhe merece esta realidade?
Não é um exclusivo nosso. Esta nova ordem mundial, da exigência e urgência dos lucros a qualquer custo, deixaram-nos na situação em que estamos. O meu comentário passa por tentar sensibilizar os leitores para a nossa realidade. Nós não podemos competir nem pensar em economias de escala. Deveríamos apostar nas especificidades dos nossos produtos, numa certificação de qualidade ambiental e não tentar reproduzir o que outros países, que não têm as nossas condições, a nossa natureza, produzem. Este é o caminho: a rotulagem ecológica e a certificação ambiental. Caso contrário, desapareceremos rapidamente. Obviamente que o que fizermos hoje, pagaremos amanhã. Nesta lógica, julgo serem importantes algumas medidas como a existência de tratamento de resíduos nas explorações agrícolas, formas de captação de água das chuvas, entre outras. Quanto à contaminação dos lençóis de água, estes locais deveriam ser alvo de uma maior protecção e um maior cuidado. Relato aqui um caso em que existe uma exploração agrícola a menos de 100 metros dos reservatórios de água que abastecem grande parte de um concelho da nossa ilha, o que aliás é proibido por lei.
O preço da água “terá de aumentar”
Há especialistas também que afirmam que uma evolução negativa e acentuada das alterações climáticas (verões mais quentes e invernos excessivamente chuvosos nos Açores) irão levar à carência de água potável durante períodos do ano na Região. Quer comentar? Como se pode já precaver esta situação?
Já tivemos o exemplo no ano passado dos níveis extremamente baixos dos reservatórios de água. Todos recordamos os níveis da Lagoa do Fogo. O que fizemos desde então? Nada, simplesmente nada. Tivemos a “sorte” de ter chovido mais este inverno, o que levou a uma reposição dos stocks, caso contrário, teríamos gravíssimos problemas este ano.
Primeiro deverá existir um enorme investimento nas redes de captação e distribuição de água por parte de todos os concelhos. Estima-se que cerca de 20 a 30% de água perde-se pelo circuito de captação e distribuição.
Em segundo lugar, dever-se-á apostar na sensibilização para a diminuição do consumo de água, ou pelo menos, um consumo mais racional.
Em terceiro lugar, dever-se-ão utilizar formas de captação de água por parte dos particulares, nomeadamente a água das chuvas. Recordo algumas casas que conheço, que debaixo do jardim da casa, tinham grandes cisternas de armazenamento da água das chuvas, que era utilizada para a lavagem de carros, regas de jardins, entre outras. Nos Açores existe muita água que corre para o mar sem o seu aproveitamento.
Em quarto lugar e julgo que este debate deverá ser feito nos próximos tempos, o preço da água terá que aumentar. Infelizmente a nossa população só irá dar o verdadeiro valor à água, se esta lhes sair mais cara, caso contrário… Na mesma linha, e só para dar um exemplo, há uma superfície comercial que vende um garrafão de 5 litros de água a cerca de 0,29€, como poderemos defender um consumo racional desta forma?
Fazer lobbie pelo ambiente
Que balanço faz do período em que assumiu funções como responsável pela Quercus nos Açores?
Com as condições que nos foram disponibilizadas, tem sido bastante positivo. Não podemos esquecer que “mudaram as regras a meio do jogo”, pois ninguém esperava o corte nos apoios à Quercus. Estamos este ano apenas com o apoio dos nossos associados, com muito boa vontade dos elementos da direcção e com um protocolo com a Câmara Municipal de Ponta Delgada, caso contrário, o Núcleo Regional deixaria de existir. Conseguimos aumentar entre 25 a 30 % o número de associados, mantivemos o núcleo aberto e activo e atraímos gente nova para a defesa do ambiente. Com toda a certeza continuaremos no bom caminho, dizendo o que temos a dizer, denunciando o que temos que denunciar e elogiando o que tiver que ser elogiado. Foram realizadas muitas actividades e prevêem-se mais nos próximos tempos. A próxima será já na comemoração do Dia Mundial dos Oceanos, em que iremos observar o fundo do mar, sensibilizando a população para a sua defesa.
Tem algo mais a acrescentar que considere útil em Dia de Ambiente?
Apenas gostaria de deixar uma mensagem de apelo à mobilização. É fundamental que as pessoas participem nas nossas actividades, sejam associadas ou não, mas manifestem-se, digam a sua opinião sobre os vários assuntos. Não deixem passar, pois os nossos filhos irão, com toda a certeza, receber uma terra bem pior do que aquela que nós recebemos dos nossos pais. A responsabilidade é de todos nós e não é apenas no dia do Ambiente que nos deveríamos lembrar disto. Deverá existir uma mudança no nosso estilo de vida. Há três expressões que costumamos usar e que considero muito felizes e apropriadas ao dia: “Think Green”, “Pensar globalmente, agir localmente” e “Vem fazer lobbie pelo Ambiente”, que retratam o actual mandato da Quercus e a mensagem que queremos transmitir a toda a população.
Autor: João Paz
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